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Foto do escritorSOS Ribeirão Sobradinho

Crônica: Nasci um Rio

O texto faz parte do Projeto Cartas ao Ribeirão Sobradinho



Eu sou o Ribeirão Sobradinho, já com esse nome pelo menos desde 1774, e vivo meu cotidiano sob diversos ataques desferidos pela incompreensão da espécie humana. Apesar disso, estou à espera de um mínimo diálogo e não desisti da luta para ser escutado, mesmo sabendo que o humano foi colocado em quarentena por causa do novo coronavírus.


Você da espécie humana, que é desprovido de qualquer movimento transcendental e que está em casa desde março de 2020 por causa do isolamento social provocado pelo surgimento do COVID- 19, vive a reclamar dessa quarentena. Você reclama, reclama, e perde uma boa oportunidade da vida para escutar, ser escutado, de poder sentir o vento da porta de casa, o Sol, ver as nuvens, as estrelas, contemplar, à medida do possível, um rio, olhar para as árvores, para os morros e diversos seres vivos.


Você, humano, tem insistido em colocar-me na história na condição de objeto ou de invisível só porque sou um rio. Mas essa sua colocação tornou-se um mal reflexivo, uma vez que essa invisibilidade, se não me faz nenhum bem, mesmo nós sendo seres interdependentes, também reverteu- se contra você, pois suas ações danosas estão conduzindo sua história para as profundezas da ignorância da espécie humana, um mal que deforma e atinge frontalmente uma travessia cultural imprescindível para que você se transforme no gênero humano.


Imagina minha situação nesse momento. Eu sou um rio, o Ribeirão Sobradinho, que vem sofrendo toda forma de degradação ambiental desde de que a cidade de Sobradinho foi criada no mês de maio de 1960. De lá para cá a espécie humana vem subtraindo as árvores da mata ciliar, proteção essencial para o ecossistema e a biodiversidade do Bioma Cerrado. As árvores, de um lado e outro do meu curso d'água, estão sendo arrancadas e, cada vez mais, o solo se mostra enfraquecido e vem dando lugar a um assustador processo erosivo.


Muitas atividades e ações antrópicas, questionáveis, estão acontecendo bem próximas das margens do meu curso de água, como, por exemplo, contaminação do solo por agrotóxicos, desmatamento para construir edificações ilegais, cujas fossas vêm provocando poluição, despejo de lixo e lançamento de esgoto diretamente na água.


Prezada espécie humana, como você vê, estou de quarentena faz bastante tempo. Apesar desse isolamento, eu não reclamo da minha quarentena criada por você, não porque eu seja um ente conformado ou passivo, mas devido a alguns bons encontros ocorridos ao longo da minha história com um outro humano, o gênero humano que vem fazendo muita diferença na minha vida, inclusive renovando esperanças materializadas na proteção das minhas nascentes.


Ao contrário daquelas edificações construídas quase dentro de minhas águas e que me causam grande mal, existem outras bem afastadas de minhas margens denominadas escolas, espaços de socialização do saber e abertos à educação ambiental, que vem reunindo diariamente estudantes e educadores e, ao mesmo tempo, construindo pontes com a comunidade para formar cada vez melhor o gênero humano, dando-lhe consciência crítica, ética, luz, sentido e visibilidade a todos os bens comuns naturais. Se mais de 2 bilhões de habitantes do planeta não têm acesso a água potável, não faz sentido me fazerem invisível, pois meus 28 km de comprimento carregam em minha calha boa quantidade de água que, se bem cuidada, dá para a sedentação de enorme variedade de vidas.


Humano, é chegada a hora de você dar um basta na destruição acelerada da biodiversidade, esse seu gesto local ou em qualquer ponto do planeta, além de aprofundar as desigualdades sociais, tem se desdobrado em crescente vulnerabilidade diante das epidemias e pandemias.


Você, humano, poderá ser poupado das pandemias, mas, para isso, terá que empreender muito esforço para alterar sua política de devastação do meio ambiente, o que violou de maneira fatal o lugar da humanidade no planeta Terra. Eu, Ribeirão Sobradinho, estou aqui, quem sabe você vai me enxergar!


HERON DE SENA FILHO – Professor da Secretaria de Educação do DF.


Professor Heron Sena trabalhando pelo Ribeirão

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